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Entrevista a Margaret Karram

A primeira entrevista à nova presidente do Movimento dos Focolares, fundado por Chiara Lubich, realizada pela diretora da edição italiana, Aurora Nicosia, em colaboração com as revistas Cidade Nova de todo o mundo. Desta entrevista foi publicada uma síntese na edição de março da revista Cidade Nova portuguesa.

Margaret Karram acolhe-me no Centro internacional do Movimento dos Focolares. Apesar dos seus já numerosos encargos como presidente, além do mais, a Assembleia Geral dos Focolares ainda a decorrer – encontra espaço para me conceder uma entrevista que tem o sabor de um diálogo profundo, verdadeiro, aberto.

Quem é Margaret Karram?

Nasci em Haifa, em Israel, sou filha de pais palestinianos, somos quatro irmãos e irmãs. Conheci o Movimento dos Focolares quando tinha catorze anos e esta luz atraiu-me tanto que a segui, durante todos estes anos, e agora estou aqui.

Queres contar-nos algum episódio emblemático da tua vida?

Um de muitos sucedeu quando eu tinha cinco anos. A nossa casa na cidade de Haifa, na região da Galileia, era a única casa de uma família cristã num bairro hebreu. Quando saía para brincar, havia crianças hebreias ao meu redor e recordo-me que muitas vezes nos insultavam. De uma vez, insultaram-me de tal maneira que voltei para casa a chorar, porque me sentia muito ferida, muito zangada, e pensei que nunca mais voltaria a brincar com aquelas crianças. A minha mãe disse-me: «Agora, enxuga as lágrimas, vai lá fora, chama esses meninos e convida-os para vir a nossa casa». Recordo-me bem como se fosse hoje, tive que superar o meu “ego”, a minha raiva, enxugar as minhas lágrimas, para convidar aqueles meninos a vir a minha casa. Quando eles chegaram, a minha mãe estava naquele momento a fazer um pão árabe e deu a cada um desses meninos um destes nossos pães árabes, redondos. Estes meninos voltaram depois para as suas casas e levaram este pão aos seus pais e mães e este ato fez com que, sobretudo as mães desses meninos, viessem a conhecer a minha mãe, a minha família, para lhe agradecer. Para mim, foi um acontecimento emblemático na minha vida, porque me ensinou que não são importantes apenas as palavras, que um pequeno gesto de amor para com o próximo, também o que é diferente de mim, que pode ser inimigo, pode superar os medos e construir a paz.

É verdade que fizeste estudos sobre o diálogo, és especialista em hebraismo, mas a verdade é também que aprendeste o diálogo com a vida, desde pequena.

Exatamente, desde pequena, porque na minha cidade convivem as três religiões, tudo é comum, convivemos na paz. É uma cidade belíssima, antes de mais porque tem um porto, há a montanha, ligada à história do profeta Elias, mas onde convivem hebreus e muçulmanos, que fazem tudo juntos, na paz. E não só, porque quando era pequena frequentei uma escola onde éramos todos árabes, mas metade cristãos de vários ritos e metade muçulmanos; por isso, desde os seis aos dezoito anos, ao meu lado nos bancos de escola também havia muçulmanos e crescemos juntos, e este não era um diálogo de estudos, era um diálogo da vida quotidiana. Penso que faz parte da minha vida.

Há uma frase do Evangelho que te guiou de um modo particular na tua vida?

«A quem me ama, manifestar-me-ei». Muitas vezes o experimentei quando não sabia o que fazer, e aí senti que se amasse, compreenderia como agir: isto foi sempre um guia na minha vida.

Falando agora nos dias que estamos a viver, que sentimentos e emoções experimentaste quando viste que se aproximava a tua eleição como presidente? E o que é que sentiste logo a seguir?

Quando vi aparecer o meu nome – devo ser sincera – tremia, estava muito comovida e também com muito temor de Deus, sobretudo diante de uma Obra tão complexa, no sentido mais belo da palavra, tão internacional. Senti um grande temor de Deus quanto ao poder ser um instrumento digno. Porém, ao mesmo tempo, poucos minutos depois, com toda esta emoção, senti uma força interior que, penso, me vinha, antes de tudo, do Espírito Santo, porque O invoquei durante todo o dia, e não só eu, sabia que em todo o mundo estavam a rezar pela Assembleia e por estas eleições; por isso, estava certa de que a oração nos tinha guiado e devia confiar que era assim, e também na unidade de todos os membros da Obra que estavam presentes na Assembleia, que naquele momento procuravam saber qual seria a vontade de Deus para o futuro da Obra. Por isso, a um certo ponto, depois de ter sentido que devia aceitar, senti uma grande força, uma grande coragem misturada com este temor de Deus, e naquele momento disse “Eis-me aqui”, porque sentia que era, antes de tudo, um chamamento de Deus. Respondi ao seu chamamento, de ser como Maria serva para a Obra, serva de cada um, não para governar uma Obra tão grande, que não é uma Obra humana, não é uma organização, uma associação, mas uma Obra que contém pessoas muito variadas, não apenas católicos mas de várias Igrejas e de outras religiões, de todas as idades, de todas as latitudes do mundo, de todas as culturas. E, então, eu disse apenas que queria ser serva de todos e poder aprender com todos, pedi a Deus para poder ser este instrumento.

O que pensas possa significar para a tua Pátria esta eleição e como foi ela acolhida por palestinianos e israelitas?

Penso que foi acolhida com uma grande alegria, e também com um grande orgulho, porque muitos me escreveram, e também expoentes das Igrejas, também o Patriarca, muitos hebreus, que me felicitaram, “torceram” por mim e disseram-me: «coragem, estamos contigo, porque te conhecemos e te apoiamos». Penso que eles sentem também uma grande gratidão, mas, sobretudo, uma grande alegria.

Ao assumires esta responsabilidade, quais são as tuas esperanças, os teus receios e os teus pontos de apoio? Tens um modelo em que te inspires para exercer a presidência?

A minha esperança, que mencionei de início, é a de que no Movimento se possa viver como numa família, isto é, pôr em prática esta herança de Chiara: «Sejam uma família». Digo-o porque sinto que neste momento é disto que temos necessidade no Movimento: relacionarmo-nos como irmãos e irmãs, estar presentes onde há alguém que sofre, como numa família; onde há alguém que está bem, partilhar com ele, como Chiara nos explicou, e não deixar que alguém passe ao nosso lado sem ter experimentado o calor da família. Ainda que alguém deixe o Movimento, que possa sentir que o amámos até ao fim. Eu experimentei isso na minha família de sangue; por isso, posso dizer que a esperança é a de que exista o espírito de família, um espírito de caridade, humilde, que quer o bem do outro para além dos erros, para além de tudo, uma caridade que tudo cobre, a caridade de irmãos e irmãs. Neste sentido, somos família, com este amor verdadeiro que não espera nada, que perdoa.

O que experimentaste nestes dias de Assembleia?

Compreendi logo que devo assumir já esta responsabilidade; mas o que experimentei  imediatamente foi sentir que não estava sozinha. Apercebi-me logo que era uma grande responsabilidade, mas que não estava sozinha, havia um corpo de pessoas que se disponibilizaram, que me deram a certeza de que se realizará aquele desejo que exprimi: que a governar a Obra não esteja uma pessoa, mas um grupo de pessoas, que hão-de ter a presença de Jesus no meio delas, e que será Ele a guiar a Obra. Isto é o que já estou a experimentar.

As novas gerações estão a assumir uma mudança de paradigma cultural no que diz respeito ao cuidado para com o ambiente. O que vai fazer o Movimento dos Focolares quanto a este tema, que também foi abordado durante a Assembleia?

Foi um dos temas muito salientados durante a Assembleia, as novas gerações sentem-no muitíssimo e devemos apoiar muito os jovens neste seu desejo. Agora, veremos as linhas que constarão do documento final, mas dele constará certamente um empenho concreto quanto ao cuidado para com a criação e quanto à continuação dos projetos que os jovens estão a implementar, como o Dare to care (Ousar cuidar). Prevejo que em todo o mundo se possa fazer ações concretas e já há muitas, mas levá-las para a frente como um estilo de vida, mudando o estilo de vida para poder fazer ações a nível mundial, e não apenas local.

A pandemia que nos atinge mudou o mundo e mudou-nos a todos. Qual é a resposta do Movimento dos Focolares em relação àquilo que todos estamos a viver?

O Movimento começou a reagir a este desafio da pandemia, antes de tudo com uma comunhão de bens materiais e pondo em comum as competências que temos em favor dos outros. Como Movimento, penso que também as nossas organizações, como a AMU (Ações para um Mundo Unido) e a AFN (Associação Famílias Novas), estão a apoiar muitos projetos suscitados pela pandemia. E espero que possamos empenhar-nos muito mais, porque a pandemia mudou a nossa vida do ponto de vista económico, sanitário e, sobretudo, penso que nos vai ensinar como estar próximos das pessoas. Talvez já tenhamos aprendido, mas devemos aprender ainda mais, porque estar próximos é a maior intervenção que podemos ter: próximos das pessoas que estão a sofrer, quer pela pandemia, quer pela pobreza e por muitos outros problemas causados por esta doença, ou pela morte de muitas pessoas, dores inconsoláveis. Estar próximos, não fisicamente, mas próximos, é a resposta que o Movimento pode dar.  

Pensando nos desafios e nas potencialidades ainda não completamente expressas pelo Movimento, em quais gostarias de te concentrar, em especial, nos próximos anos?

Uma boa pergunta. Neste momento, o que me parece ser um desafio para o Movimento – deixem que o diga – é a falta da cultura da confiança. Digo-o com muita misericórdia, mas sinto que, neste momento, um desafio para o Movimento é a presença, de algum modo, de uma cultura da suspeita. E então, sinto que devemos superar este desafio, aumentando a caridade entre todos os membros da Obra, para fazer triunfar mais a cultura da confiança, da caridade.

O que é necessário para dar uma maior força atrativa, sobretudo para com as novas gerações, aos ideais do Movimento dos Focolares?

O que me vem à mente, continuando a inspirar-me em Chiara, é a sua meditação “A atração dos tempos modernos”: penetrar na mais alta contemplação, mas permanecer inseridos entre a multidão, homem ao lado do homem, para partilhar as alegrias e as dores, as coisas de que o próximo tem necessidade. Penso que é também a atração deste tempo; mas, para além de estarmos misturados com a  multidão para formar rendilhados de luz na Humanidade, é necessário também sermos, de algum modo, contemplativos. Nestes dias alguém me enviou uma frase do Pe. Benzi, do Movimento Papa João XXIII, onde dizia, substancialmente, que para podermos estar de pé, é necessário sabermos estar de joelhos. Penso que a atração que nós podemos dar é esta: se queremos ser atraentes, se queremos dar um exemplo, penso que devemos saber ajoelharmo-nos.  

Como vês o atual modo de governo do Movimento? Pensas que será necessário rever algum aspeto?

Certamente muito foi feito durante a presidência anterior, mas penso que esta equipa que está a ser formada deverá trabalhar cada vez mais num espírito de sinodalidade, concretizando aquilo que Chiara disse sempre quando lhe perguntavam como seria o futuro da Obra, isto é, saber que a Obra não é governada por uma pessoa ou duas (presidente e copresidente), mas pela presença de Jesus entre as pessoas e penso que esta será também a salvação da Obra. Chiara disse-o muitas vezes, deixou-nos isso como uma segurança. Ao ouvir meditações de Chiara nestes dias, veio-me uma grande paz, porque disse a mim própria que, lá no Céu, Chiara estará tranquila se fizermos isto. Então, gostaria que o próximo governo da Obra seja assim, que possamos dar alegria a Chiara no Céu.

A propósito de sinodalidade, o Papa encorajou recentemente a Igreja italiana a empreender um caminho sinodal. Trabalhaste em contacto estreito com movimentos e associações católicas italianas e não só. O que poderá significar, concretamente, este trabalhar juntos?

Significa muitas coisas. Para mim, a experiência destes seis anos foi muito enriquecedora e vi que quando trabalhamos juntos, há uma Graça acrescida, há um enriquecimento acrescido, porque descobrimos o dom que cada um é para o outro e quando trabalhamos juntos para um projeto, ou quando apenas nos encontramos ou participamos numa atividade do outro, sentimos que somos um dom maior para a Igreja. Estes carismas estão todos ao serviço da Igreja e quanto mais colaborarmos juntos, tanto mais poderemos testemunhar ao mundo a beleza da unidade e a riqueza dos vários carismas.

Esta entrevista é também em nome de todas as Cidade Nova do mundo. Eis, então, uma pergunta sobre a Cidade Nova. Que contributo pode dar a Cidade Nova a todas estas perspetivas de que estamos a falar?

A Cidade Nova pode dar muitíssimo. Antes de tudo, pode dar este novo olhar do Movimento, com uma esperança nova para os seus membros no mundo. Penso que a Cidade Nova está a fazer muitíssimo, e aquilo que nela me agrada é que é cada vez mais universal; que oferece testemunhos de vida que são o exemplo mais eficaz que pode falar ao mundo; e que pode dar um suporte cultural ao Movimento dos Focolares; porque a Cidade Nova está a veicular cada vez mais esta cultura; porque sinto fortemente que devemos ser formados culturalmente, ser abertos, mas também nutridos pelo carisma de Chiara; e a Cidade Nova está, cada vez mais, a colocar isto em relevo, mostrando cada vez mais a experiência mística de Chiara do Paraíso. Dirijo à Cidade Nova os meus votos de ótimo trabalho. Serei sempre a vossa apoiante.

Margaret, muito trabalho te espera, sabemo-lo, e agradecemos-te por nos teres dedicado todo este tempo. Mas o que é que te agrada fazer para te repousares, para te divertires, para descontraíres?

Agrada-me passear à beira-mar (o mar repousa-me muitíssimo), olhar o pôr-do-sol; agrada-me muito a música; mas, sobretudo, o que me faz repousar é escrever poesias. Quando escrevo uma poesia, exprimo o que tenho de mais profundo dentro de mim e que não consigo exprimir verbalmente, exprimo-o de um modo um pouco mais imaginativo, mais poético. E isto faz-me repousar muito. 

Muito obrigado e felicidades, presidente!

Eu é que agradeço!